segunda-feira, 31 de janeiro de 2011



dois pra cá

chega mais perto de mim
que eu vim te proteger da chuva,
das coisas que a chuva traz.

- tem lugar pra dois.

pois se é pra molhar, eu molho.
faço vento e tempestade
bem embaixo dos lençóis.
eu faço mais, se é pra molhar.

sou o suor de toda noite,
a gota d'água em teus cabelos que
persiste,
a nuvem negra em dia claro de verão.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

pí(n)caro

essas cinco sílabas
cravadas no verso acima
nada dizem do acaso do tempo
ou do clima

já não cabem em si
as cinco sílabas do poema
pelo não, pelo sim (ou talvez)
melhor seria se fossem seis.

não cabem no verso do poema
o poeta
nem as nove mulheres
de véu e de pluma
as nove mulheres de pena.

não cabem o bar e o salário
no metro do poeta,
nem o amor - maior- , não cabe.

que dó do poeta!,
não fosse pouco, seria tanto.

cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

angelus

sempre que chega a meia-noite
(e a poeira da rua assenta)
é possível tocar o tempo
com dedos de saudade.

e lembrar das coisas que a memória
guardou em quarto escuro,
como fossem todas proibidas,
essas caras de ontem.

irmãos à mesa,
o refrão,
um dia.

e abençoadas sejam essas marcas
de felicidade merecida,
coroas de espinho
que revelam majestade.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

 hosana

Senhor, eu peço calma.
eu peço pressa em ser a cama
que interessa aos olhos dela.

que na ternura
essa vontade de querê-la sempre nua
se emudeça.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

prece

esses anjos que regem o sono
nunca bateram o ponto.
nunca foram à farra,
nunca fizeram nada até
a madrugada bocejar.

daí essas maldades noturnas,
os soturnos olhos pensos matinais.

são, sim, umas gracinhas
essas criaturas angelicais,
tão distantes de nós
e do Pai tão próximas.

mas bem que poderiam deixar
a um velho e vil demônio
a ingrata tarefa de adormecer
os amantes e (por que não?)
as criancinhas.

ele bem saberia respeitar
a imponência sublime de uma vadiagem.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011




a roda da fortuna

o que quer de mim essa mulher
serpente que me percorre o asfalto?

feita de memória,
me chegou pela manhã.
abriu-me as portas e o sorriso
e partiu.

não disse nada que não fosse
besta.
não trouxe nada que não fosse
festa.

a mulher do meu passado
pintou a cara de louca,
quebrou a casa,
rasgou-se toda e foi embora,
cantando entre canteiros.
inadvertidamente nua.

 
cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

dialética

ao sentar-me nesta cadeira
feito um funcionário,
deixo aquilo que me é mais caro.

ao olhar para fora
a pensar na mulher que demora,
sem, entretanto, ir ao seu encontro,
traio em mim aquilo que me deixa tonto.

na textura sutil do corpo,
ela diz,
a vida se desenha.

e eu penso que sim,
que o corpo está para a vida
como o vinho está para o copo.

cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

poema para um dia de febre

 
o meu corpo é um templo
onde deuses pagãos se atravessam.

nele, nada é mínimo.
todos os poros ardem como
a morte de mil estrelas,
como o grito inútil dos condenados.

os deuses que por ele se perpassam
deixam marcas de dores, suores e sonhos.

em espasmos, a fragilidade humana
é deflorada e padece.

um perfume, apenas, é o que resta,
timidamente guardado pela cumplicidade de um lençol.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

ao poeta, sua sina (3)

todos os caminhos
me conduzem ao mesmo poema.

- todos os caminhos me conduzem.

à deriva, vago pela rua.
com seus dentes de onça,

a noite me vigia
e espera.
espreita paciente.

alheio ao perigo,
sigo os passos da sereia.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente